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A Tela Abstrata

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(*) Senio Alves

De todas as telas que pintei, a melhor é abstrata. Nada figurativa, um verdadeiro abismo sem forma. Um vazio criativo e comunicativo. Por isso mesmo, a tenho como expressão da mais pura visão de mim mesmo. Ao contrário dos outros trabalhos, não demorei muito tempo para executá-la, bastaram as sobras de outras telas e um pouco de reflexão. Como a sua construção não atendeu a nenhuma encomenda, pude ser o mais simples e despretensioso possível, beirando o minimalismo.

Antes de tudo, é bom eu deixar bem claro que não sou um grande artista, um bom pintor, alguém reconhecidamente premiado ou elogiado pela crítica. O meu trabalho é simples e a minha produção é bem modesta. Assim sendo, qualquer tela poderia ser a minha melhor. No entanto, já pintei lindas paisagens naturais, retratos realistas e expressivos, conseguindo arrancar elogios dos amigos mais próximos e alguns clientes interessados. É bom alertar também que o espectador vê o que quer, dá a sua própria interpretação para a obra de arte, pois é assim que ela comunica.
Alguns espectadores são breves ao contemplar a minha melhor tela.

Parecem não a entender, ou simplesmente não se importam com o seu valor estético. Por breves segundos se deixam ser capturados pela tela, mas não se sentem atraídos pelo seu conteúdo e facilmente se desvencilham dela, às vezes, com um leve sorriso de desprezo. Isso não me incomoda, o artista deve estar sempre pronto para lidar com o desprezo, as telas mais reconhecidas pelo público, nem sempre, são as preferidas dos autores.

Outros, mais seguros no hábito de julgar, dizem que a tela não possui nenhum valor artístico e, portanto, também comercial. Dizem tratar-se de uma fraude, talvez uma cópia grosseira de alguma grande obra importante. Na melhor das hipóteses, uma releitura inexperiente. Com o dedo indicador em riste, apontam-na com ar de acusação. Verdade seja dita, acho mesmo que a minha tela não é tão original assim.

Há pessoas, não poucas, que se sentem ofendidas pelo conteúdo da tela. Dessas pessoas, algumas chegam mesmo a ficar irritadas. Sentem-se afrontadas pelo emaranhado de coisas que sobressaltam da tela, são muitos traços e cores justapostos desordenadamente, um caos total que entra em oposição com o bom gosto do observador. Quando isso acontece, tais pessoas quase não seguram o ímpeto de quebrá-la (sei que é fácil quebrar obras de arte devido ao perigo silencioso que elas representam). Nesses momentos me sinto também um tanto quanto constrangido, é que, às vezes ao olhar para a tela eu também não a aceito como obra da minha criação.

Há observadores que a contemplam por muito mais tempo, passam minutos, horas, dias observando a mensagem abstrata impressa ali, naquele retângulo. Procuram dar sentido a algo que não foi pensado, calculam ângulos, valores tonais, texturas, materiais, pequenas referências visuais, pareidolias confortantes ou absurdas. Observam-na à curta distância, se afastam e fecham um dos olhos para mirá-la melhor, fazem enquadramento com as mãos e chegam a sugerir mudanças. Querem por todas as vias, mudar o seu conteúdo, dizendo ser pelo bem da arte. Nesses casos eu preciso lembrá-los que a obra já fora concluída e que alterações estão fora de cogitação. Digo-lhes que a obra não obedece aos comandos do criador e ganha vida própria, basta ver o que aconteceu com a criação humana. Esses observadores mais ávidos por explicações, chegam a mudar o ângulo da observação para procurar algum sentido que caiba na sua avaliação. Geralmente veem o que a obra não reflete.

Há ainda, alguns amantes da arte que criam narrativas para explicar a tela. Falam que o meu estilo se parece com o estilo do pintor “fulano”, que a minha palheta se assemelha ao artista “sicrano” e que o meu temperamento e força dramática se aproxima do gênio “beltrano”. Acho tudo isso uma besteira. Tudo o que eu queria era ser reconhecido como “eu mesmo”.
Quando olho para a minha tela eu me vejo, sem mais nem menos. Vejo ali a impressão e a expressão de tudo que eu fui e sou. Minha tela não precisa concordar comigo e nem eu com ela. Não precisa também concordar ou discordar com o gosto dos outros. Não busco aprovação. A arte não tem dono, nem pátria e nem preconceito: não vai deixar de existir e se comunicar devido à minha opinião individual. A arte é um conhecimento universal e, portanto, coletiva, mas a sua mensagem aguda se comunica na individualidade e na subjetividade.

Houve mesmo um espectador que me provocou e desnudou o meu trabalho, o que me fez lembrar o episódio do rei que desfilava nu pelas avenidas do reino e todos os súditos teorizavam o seu ato. Uma criança aproximou-se da minha tela, fitou-a por breves instantes e já deu o seu veredito em meio a mais uma cambalhota:
– É um espelho!

(*) Senio Alves é goiano. Chegou a Mato Grosso em 1990, e está radicado em Rondonópolis, desde 2004. Professor da rede pública municipal, artista plástico, escritor e musicista

 

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