“Começou tudo de novo…” Ouvimos isso com certa freqüência no começo do ano, reencontrando pessoas que saíram de férias e retomam seu trabalho, outras que não interromperam suas atividades com viagens, mas entraram no clima festivo de final de ano e agora se referem apenas ao início desse outro pedaço do tempo.
Embora cada momento possa ser aproveitado para fazer operar o novo, sem a obrigação de fazê-lo com data marcada, o início do ano acaba por sugerir que se faça isso, dado o poder da cultura, e hoje o apelo da mídia em nossas vidas.
A repetição da frase feita, ainda que impensada, remete a significados particulares. Para uns a facilidade na renovação de projetos que se repetem ano após ano e nunca se realizam. Outros preferem inovar nos sonhos apostando tudo no milagre do calendário, porque aprenderam que o tempo é remédio para tudo e nada como deixá-lo passar.
Enfim, para tantos, a continuidade de uma existência arrastada na eterna esperança de que o outro faça alguma coisa para limpar o ranço que já impregnou a rotina na qual estão há muito inseridos.
Aos que tem sempre a quem culpar pela mesmice da própria vida, resta o amparo de começar tudo “nova mente”, enganchado na mentira que na vida aborta a possibilidade do encontro com qualquer novidade, seja lá qual for o dia marcado pelo calendário.
Impressiona o efeito da queixa, que é sempre remetida para o outro. O que dizer de alguém insatisfeito com o trabalho lamentando ser explorado há 15 anos? E aquele que chora um relacionamento amoroso infeliz desde seu início, no século passado… Os exemplos são infinitos, mas o que é que cada um está disposto a fazer, arriscando muitas vezes tudo, para sair daquilo que oprime?
Certamente de nada adianta a pose de boa moça que a todos ajuda, é honesta e trabalhadora, como preferiam nossas avós, mas nada ou pouco consegue fazer pelo próprio espaço no mundo, embora se debata tanto para isso.
A queixa tem sim seu pseudo poder anestésico: justifica (a mesmice), acalma (as inquietações), protege (da responsabilidade). Nada como ter de quem se queixar, preferencialmente contando também com aquele com quem pode se queixar. O ouvinte compreensivo só consegue colaborar na sustentação desse lugar de vítima que muito bem cabe ao queixoso que passa a ter um aval para continuar patinando vida afora. Em que isso pode ser útil para alguém que não conseguiu por si só, mudança, até então?
Indo por outro caminho encontramos aqueles que realmente trabalham por esses sonhos sabendo que se não houver a mudança que altera sua posição na vida, a passagem de um ano, de um trabalho ou de um parceiro para outro em nada pode desviar o rumo de uma história que insiste em seguir o que pensa ser seu curso natural.
Pela vertente da Psicanálise, o sujeito é convocado a sair da queixa e pensar nas decisões a serem tomadas. A partir disso questões são elucidadas e tantas outras apontadas. Cabe ao analista a “autorização do desejo” convocando o sujeito, inevitavelmente, para a responsabilidade de suas escolhas (JAM).
Temos a ilustração com a composição de Ivan Lins e Vitor Martins na voz de Simone – “Começar de novo” – intimando para a responsabilidade que cada um tem para sair do comodismo, por sua conta e risco, contando com a própria capacidade na realização de seus desejos, sem a promessa de que é fácil, mas com a certeza de que é viável: “Começar de novo/E contar comigo/Vai valer a pena/Ter amanhecido/Ter me rebelado/Ter me debatido/Ter me machucado/Ter sobrevivido/Ter virado a mesa/Ter me conhecido/Ter virado o barco/Ter me socorrido”.
Para tanto, é preciso o enfrentamento daquilo que se delega ao Outro. Simone continua: “Sem as tuas garras/Sempre tão seguras/Sem o teu fantasma/Sem tua moldura/Sem tuas escoras/Sem o teu domínio/Sem tuas esporas/Sem o teu fascínio”…
Não existe procuração para a vida. Cabe a cada um… Começar de novo…
CRP 14/00435-0
*Correspondente da Delegação Geral – MS/MT – Escola Brasileira de Psicanálise
Psicoclínica 66 3421 5684
