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Rondonópolis
, 14 junho 2024
 
 

10 de dezembro: Valores e cultura na Rondonópolis de antigamente

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Uma aglomeração na então pacata Avenida Amazonas na década de 50

Nessa data em que se comemora o aniversário da cidade de Rondonópolis, resolvi revelar alguns segredinhos dessa senhora sexagenária que hoje completa 69 anos de emancipação político-administrativa; mas, que na verdade, carrega em si outros 47 anos (que corresponde a data de sua fundação em 10 de agosto de 1915).

Porém, o ato de esconder a idade é próprio das mulheres, não é mesmo? Sexagenária, sim, mas, esclerosada… nunca, nem pensar! Ainda mais partindo daquela que sabe da importância que tem e que quer se manter viva na memória de um povo que só lhe quer bem.

Aqui, além de um histórico geral, abordarei a interpretação imaginária da realidade dos povoadores da região e dos migrantes que também são os heróis anônimos de Rondonópolis.

 

 

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O conteúdo partirá de relatos memorialistas de entrevistados (que participaram de minha tese de doutorado) e de crônicas referentes às narrativas de viagem e de experiências de vida dos cadernos de memórias das irmãs Thereza Marangoni e Lúcia Schweitzer; que situam as crenças, as tradições, os costumes, as ideias predominantes, os silêncios… que, seguramente, passam desapercebidos das fontes da história oficial que, além de tudo, são restritas e desfalcadas.

SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA – Na data de hoje, Rondonópolis completa 69 anos de Emancipação Político-Administrativa em decorrência da Lei estadual 666 de 1953 que lhe outorgou a alcunha de município. Antes, em 1920, o então Povoado do Rio Vermelho foi elevado à condição de distrito de Santo Antônio do Leverger, e a partir de 1938 passou a ser distrito de Poxoréu – justamente quando Poxoréu fora transformado em município.

A história do povoamento do antigo Rio Vermelho aconteceu a partir de 1902 com a fixação de famílias procedentes de Goiás, Cuiabá e de outras regiões do estado. A existência do “Povoado” foi oficializada com a promulgação do Decreto Lei nº 395 de 1915 que estabelecia uma reserva de 2.000 hectares para o patrimônio da povoação do rio Vermelho.

Professora Arolda Duetti Silva (Foto – Arquivo/Luci Léa)

Este é o registro de identidade do povoado, cuja data de fundação (10 de agosto de 1915) foi regulamentada pela Lei Municipal 2.777 de 22 de outubro de 1997.

Em 1918, o povoado, que já era habitado por mais de 70 famílias, passou a ser denominado de Rondonópolis – homenagem realizada pelo deputado e tenente Otávio Pitaluga a Rondon, que recebe, então, a outorga de Patrono de Rondonópolis.

Contudo, a década de 1920 é marcada por problemas com enchentes, epidemias e desentendimento entre os moradores locais, e se esvazia quase que completamente até final de 1940. O “local da hora” passou a ser Poxoréu e seus diamantes. Sobre isso o bispo prelado Dom Vunibaldo, de passagem pelo local em 1942, relembra “(…) existiam três casas, a Missão Protestante, a casa do correio e uma tapera onde morava o balseiro.”

No entanto, em meados de 1948, ao passar por Rondonópolis o historiador Lenine Póvoas afirma que: “Vi mais de cinquenta ranchos e uma vila que se instalava”. Era a busca por terras baratas que se evidenciava desde então. Assim vieram migrantes paulistas, goianos, mineiros, mato-grossenses, japoneses e libaneses que projeta um crescimento demográfico nunca visto até então.

Portanto, 1947 é considerada a data recorte que marca o início do processo de crescimento demográfico e econômico de Rondonópolis, à medida que o local é inserido no contexto capitalista de produção como fronteira agrícola mato-grossense, resultado da política do sistema de colônias implantado pelo Governo de Arnaldo Estevão de Figueiredo.

Dessa forma, em 10 de dezembro de 1953, já com uma população de 2.888 moradores, Rondonópolis consegue a sua emancipação política, e destaca-se como um promissor Município no cenário do Estado de Mato Grosso – crescimento que acontece a partir da década de 70 com o advento do modelo agroexportador, da modernização do campo, da melhoria da malha viária e da concretização de políticas de incentivos fiscais do Estado.

“NÃO SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM” – Esta é uma abordagem que vai além das relações de produção e se fixa, sobretudo, no universo cultural que é imanente à sociedade que se quer esquadrinhar.

Em Rondonópolis, os preceitos morais, as crenças, os hábitos, os costumes, a forma de ver o mundo e os seus desafios compõem dois universos bem distintos e delimitados: o primeiro enquanto cultura isolada (do início do século XX até final dos anos 1940); o segundo enquanto cultura integrada ao resto do país (a partir de 1947 e se intensificando na década de 1970, com a modernização das estradas e meios de comunicação, entre outros).

UNIVERSO DA CULTURA ISOLADA – Este universo é próprio da população sertaneja, pobre, humilde, ignorante, sofredora e que vivia em ranchos cobertos de capim, longe do acesso aos meios de comunicação e de estradas, nas quais, quando muito, transitava um caminhão a cada dois ou três meses – caso da· estrada Cuiabá-Campo Grande em 1947, segundo os depoimentos das Irmãs missionárias Lúcia Schweitzer e Thereza Marangoni.

Em Rondonópolis, entre1930 e 1949, existiu um vazio de pessoas e a ausência de escola que, aliadas ao isolamento e a distância do lugar, criaram um tipo de “arquipélago cultural” distinto da cultura do resto do país, a ponto de a Ir. Thereza exclamar: “A gente entra na roda da conversa e procura também saber fazendo perguntas, e, às vezes, leva cada susto e surpresa! É muito diferente da vida da cidade ou da vida de nosso Sul – Santa Catarina;

Nesse ambiente, predominavam valores regidos por um código moral de sobrevivência que gerou algumas práticas consideradas acintosas e incestuosas para o nosso código moral. O primeiro exemplo está relacionado ao tipo de comportamento frente aos velórios e enterros.

Dona Dalva Gouveia (Foto – Arquivo/Luci Léa)

Narrados pelas missionárias, “os velórios se assemelhavam mais a uma festa regada a muita pinga e intercalada por brigas. Pela meia-noite, os que ainda se encontravam de pé passavam um pau pela rede em que estava o defunto e o enterravam, às vezes até mesmo no mato, em meio a gritaria e palavrões”.

De um modo geral, segundo Ir. Lúcia, as questões sobre sexo eram encaradas de forma muito natural, quando a maioria das crianças acompanhava a gravidez da mãe e até chegava a assistir ao parto. Já as práticas incestuosas, embora frequentes, estava muito longe de poder ser generalizadas.

Mesmo assim: “Eram comuns casos de irmãs ficarem grávidas de seus irmãos, ou até de se envolverem com o próprio pai. (…) Lembro-me de uma família em que, com o falecimento da mãe, o pai se juntou com a própria filha, que gerou duas crianças: uma nasceu toda mole e veio a falecer em pouco tempo: a outra sobreviveu até os doze anos, e, embora anormal, conseguia andar. (…) Muitos dos sertanejos não entendiam o que nós falávamos, mas, na hora da morte, a gente via que aqueles velhos morriam com muita fé, dizendo ‘ O Senhor divino, ajuda eu…’. Assim, podia-se observar que Deus ainda estava com eles, e o que haviam feito a vida inteira se baseava no instinto natural de sobrevivência.”

Segundo Ir. Thereza, os sertanejos “só tinham fé em seus santos e não entendiam nada de Deus, nem do céu ou da alma. Para eles o santo era aquela imagem que castigava ou abençoava conforme a festa que se fazia em sua honra”.

De outro lado, completando o perfil do homem sertanejo da região, Ir. Thereza destaca: “Muitas vezes dizemos que o sertanejo é pobre e preguiçoso, mas, o caso é que ele não tem muitas ambições! A sociedade de consumo permanece ainda longe”.

Nessa fase, os moradores locais pretendiam “simplesmente viver” (o que não era tão simples assim) …, deixar a vida correr solta, sem preocupações com o futuro, principalmente se relevadas as dificuldades de acesso, a pobreza e o abandono da região.

UNIVERSO DA CULTURA INTEGRADA – Depois de 1947 os novos moradores, migrantes procedentes de vários Estados do Brasil e até imigrantes japoneses e libaneses, vinham em busca do eldorado e pretendiam uma vocação de riqueza para si e para o lugar, e conseguiram, inclusive, envolver o resto da população.

Igreja Matriz e o Colégio Sagrado Coração de Jesus ao fundo – década de 50

Dona Arolda é de opinião que: “Nós que chegamos até a década de 50, nos adaptamos àquela vidinha e, assim, cruzamos os braços. Porém, o estabelecimento de grande número de migrantes paulistas, nos anos de 1960, injetou sangue novo na região e contaminou pelo espírito de mudança: na produção e na vida econômica em geral, na vida intelectual, nos costumes, em tudo enfim… Ficou , a partir daí, definida a divisão de classes em Rondonópolis: de um lado, se destacando os ricos – com roupas boas, casas lindas e confortáveis, carro do ano – de outro, os pobres que não podiam ter nada disso.”

Irmã Thereza Marangoni (Foto – Arquivo/Luci Léa)

Quanto ao “universo da cultura integrada’’, este foi introjetado, inicialmente, através de valores trazidos pelos missionários (padres e Irmãs) e pela grande leva de migrantes procedentes dos mais diferentes rincões do país: com princípios morais rígidos e proibitivos determinaram condutas discretas, dissimuladas, preconceituosas e reprimidas, rotuladas de moral burguesa cristã.

Ir. Lúcia afirma, que chegou em Fátima de São Lourenço em 1947 e em seguida veio para Rondonópolis, se recorda que: “Por volta de meados e final dos anos 50, os novos moradores da região, em maior número que os sertanejos – eram pela moral fechada, pelo recato e ‘bons costumes’, que antes não tinham o menor valor. Com a mudança, começou-se a cobrar a responsabilidade de paternidade, onde a honra quase sempre era lavada a sangue; já falar em menstruação, gravidez e prostituição tornou-se tabu. Ou seja, no dia-a-dia, os pais começaram a vigiar mais os seus filhos, principalmente as suas filhas.”

Bittencourt Lopes Esteves (Foto – Arquivo/Luci Léa)

Quanto a esse fato, Dona Arolda Duetti Silva esclarece: “As moças de ‘família’, geralmente virgens, eram consideradas pelos homens, as suas futuras esposas e mães de seus filhos e, portanto, intocáveis antes do casamento – mas os namorados davam vazão de seus desejos nas casas das prostitutas”.

Dona Dalva Gouveia é mais contundente: “No fundo, no fundo, a mulher servia de capacho de seu homem”.

Porém, fosse como fosse, tanto a mulher quanto o homem se uniam por necessidade, por exigência social do que propriamente por amor que, por sua vez, ficava em segundo plano.

Nessa fase da história rondonopolitana, o morador local apresenta um perfil de vida marcado por crenças acerca da abundância da terra, da riqueza fácil e imediata. Além do que, as crenças em superstições e curas por simpatias, bendições e remédios caseiros, se disseminaram ao lado da crença na ciência e na medicina.

Obras do Colégio das Irmãs/1950 (Foto – Acervo Irmãs Catequistas Franciscanas)

Dona Delvita de Souza relembra: “Existia um assobio bonito em noite de lua cheia que as pessoas juravam ser de Saci-Pererê, enquanto eu achava que era apenas bichinho do mato. Falava-se também da mula-sem-cabeça e do lobisomem nas noites de sexta-feira da Quaresma”.

A fé e religião se baseava na reverência a Deus, à Nossa Senhora, aos santos. Ir. Thereza comenta que: “O povo simples nos dá grandes lições de teologia, de fé, de busca de Deus e de caridade fraterna. Ele não é tão legalista e moralista como nós.”

A década de 1950/1960 era o tempo de se divertir nas águas do Arareal, dos piqueniques e das “serenatas”. O Sr. Wilson Nogueira se recorda: “Daquele grupo de amigos que ficava tocando violão e cantando madrugada afora, enquanto jogava conversa e comia farofa de galinha, às vezes feita de frango roubado”. Enquanto isso a criançada vivia solta para pescar, nadar, soltar pipa, brincar de roda, de pique, de esconde-esconde.

O fato é que, os anos 1970 foi um divisor de águas com o advento da “telinha mágica” que criou novos comportamentos, novos valores éticos e estéticos, afetivos morais e econômicos, muitos dos quais já latentes nos movimentos de contracultura e da liberação feminina.

A inauguração de emissoras de rádio, jornais, cinemas e torre de Televisão, em Rondonópolis, permitiram não só a veiculação das informações externas, mas também a possibilidade de criação e introdução de ideias que, sem dúvida, contribuíram para a alteração da visão de mundo dos moradores, com concepção mais progressista e universal.

Com certeza, a cidade pacata de antigamente ficou no retrovisor do tempo, que o roteiro de um drone teleguiado por sobre Rondonópolis não consegue captar e nem registrar. Parabéns Rondonópolis por mais um ano. Muitas felicidades a seu povo!

(*) LUCI LÉA LOPES MARTINS TESORO, doutora em História Social pela USP e autora do livro “Rondonópolis-MT: um entroncamento de mão única”… [email protected]

 

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