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Rondonópolis
, 27 maio 2024
 
 

Casamento na avenida (I-III)

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O primeiro repicar do sino, tangido pelo octogenário Frei Enigna – em sua batina marrom, ornada pelo Cordão-de-São-Francisco, era o convite aos fiéis para a Santa Missa, extraordinária, à ser celebrada, naquela manhã de sábado pelo carismático Frei Servácio.
O Sol já esparramava seus raios luminosos pelo largo que se estendia à frente da pequena Igreja do Sagrado Coração de Jesus. As mais persistentes “fiéis” àquelas celebrações, já estavam a postos. Madrugadeiras, as vacas do “Melado” – Firmício Barreto, após a pastagem na praça, se posicionavam deitadas a ruminar, à frente do templo, como se esperassem as bênçãos do celebrante.
No tanger do segundo sinal, Dª Vicentina, Donana “Boleira” e Dª Maria de “Dotô Preto”, as mais fervorosas beatas do Sagrado Coração, adentravam os portais da nave, cumprindo suas obrigações para com a Santa Madre Igreja; a seguir, em seus hábitos azuis-celeste, entoando cânticos de louvor à Virgem, chegavam as freiras. Na igreja lotada, a fumaça vertida pelo turíbulo em brasa, incensava as cabeças dos fiéis que, genuflexos, imploravam perdão para os seus pecados.
Antes do terceiro sinal, chegaram na carroceria da camionete do DNER, dirigida pelo diretor local do órgão, o engenheiro paraguaio, Miguel Angel Ortiz – que almejava a vida monástica, e adotaria o nome de Padre Miguel, vários funcionários do departamento e também, craques do Rodoviário Futebol Clube.
A voz de barítono do pastor, inundou em latim, os quatro cantos da Praça Brasil:
– “Dóminus vobíscum.”
– “Et cum spíritu tuo”. Responderam os coroinhas, seguidos pelo coral das freiras.
Advertida na homilia, dos males do pecado, que destrói o corpo e flagela a alma, no fogo do Inferno, a cidade, em abençoada angelitude, marchou em busca de seus interesses imediatos.
A Praça era um centro administrativo da fé, da política, da coerção e, porque não dizer também, da diversão? Lá estavam: a Câmara de Vereadores com seus cinco membros, que compunham o Poder Legislativo do Município; a Prefeitura Municipal; a Cadeia Pública, anexa à Delegacia de Polícia. Duas traves fincadas no espaço que separa a rua Fernando Corrêa da Costa da rua João Pessoa, denunciavam a existência do Campo de Futebol, sempre lotado de torcedores, aos domingos, para vibrarem pelos times de suas preferências, dentre eles, Atlético, Valinho e Rodoviário. Fora os prédios públicos, e o templo religioso, uma dezena de casas compunham o conjunto arquitetônico, em volta da Praça. Lá estavam: as ruínas da serraria do Deodato – que beneficiou o madeiramento do casario existente, a maioria, sob a enxó e o martelo do carpinteiro Francisco Carnaiba; A desativada oficina mecânica do finado Avelino; a tipografia do instrutor cívico das escolas, Pedro Ferrer; a casa do empreendedor português, Adolfo Augusto de Morais, – que planejava lotear suas terras, banhadas pelos rios Vermelho e Arareau, com a denominação de “Vila Aurora”; A casa do Inspetor Escolar Benjamin Guimarães; O Hotel Central do volumoso José Amâncio Dias – o “Bagunça”; A Pensão Bahia, de José Pereira Baia, e o Hotel Rio Branco, do vereador Anísio Braga.
Se a solitária praça, ainda envolta em santificação, absorvia as energias do culto celestial daquela manhã, era em outra parte da cidade, que ecoavam os explosivos gritos dos interesses mundanos.
Sob a copa de um frondoso pé de manga, na avenida Marechal Rondon, no local onde nascia a rua Dez de Dezembro, uma dezena de vendedores mercadejavam, na “Feira da Mangueira”. Complementava o movimento da feira livre, nos arredores, as casas comerciais: “A Vencedora” – comércio varejista de secos e molhados; a movimentada “Casa Araújo” – com sua variedade de tecidos, malas chapéus e perfumes, e que, através do riso amistoso de seus proprietários, cativava os fregueses da roça, que também buscavam os “prefumi Tabu e Roiá Briá”, que iriam exalar nos corpos das donzelas, nos bailes das festas sertanejas; O “Bar do Roxinho”, local onde um caminhão Chevrolet, algumas carroças e montarias diversas, despejavam levas de matutos, vindos das glebas, para a negociação de seus produtos.
O alvoroço era geral, em volta da feira. No amanhecer do dia, já se ouvia o guinchar de um porco, sacrificado à faca, na porta da casa do Maroto. Mascates de cortes de tecidos; Vendedores de aves, suínos, ovos e frutos, anunciavam em alto e bom som suas mercadorias. Mas ninguém superava o velho baiano, seu Felipe, na arte de propalar seus produtos:
“Olha a mandioquinha! tem da grossa e da fininha! da branca e da amarelinha! O marido descasca, e a patroa cozinha!”
Um novo serviço de alto-falante, com suas poderosas cornetas, inundava o ambiente com os sucessos sertanejos de “Silveira e Barrinha”, “Tonico e Tinoco”, “Alvarenga e Ranchinho”.
O comércio ilegal corria frouxo. De munição e armas de fogo, até a venda do legítimo perfume francês, que a ignorância do povo apelidara de “perfume paraguaio” – de vez que o produto passava pela República Guarany, nas asas do contrabando, antes de aqui chegar.
Maria Sete-Voltas, sem dar conta de sua fealdade, denunciava em voz alta, seus imaginários casos amorosos com figurões da cidade. Até a simulação de invocação de espíritos havia na feira. Um negrinho simpático, de seus dez anos, arrancava a admiração das pessoas – após receber alguns trocados, fechava os olhos, e proferia um mantra: “Meu são Miguel, santo benzedor, cura febre, doença e calor!“
A tagarelice das lavadeiras, equilibrando nas cabeças, suas trouxas de roupas, iam em direção ao rio Arareau. Admiradas, comentavam os espetáculos do Circo do “Meloso”, com seu palhaço engraçado, e os dramalhões que induziam às lágrimas, a sensibilidade feminina. As confidências das comadres eram ditas, a meia-voz, num canto qualquer, sem escapar no entanto, de algum ouvido de curioso. Siá Maria Fateira, em conversa com uma comadre, lamentava os “aperreios”, que lhe traziam o velho marido.
– Tô muito sufrida cum Jão, cumadi; Jão, quando novo, vivia dia e noite no cabaré. Agora, que tá véio e imprestávi, só me dá trabaio! dou banho ni Jão, lavo o saco di Jão, lavo o tubi di Jão, e, assim mesmo, Jão ainda guarda roncôio de mim!
No meio daquele barulho, ouve-se cantigas de folia de reis. Era “Lau Doido” saindo da casa de Zé Barriga, com sua “Bandeira do Divino”, seguido de sanfoneiro, violeiro e batedor de bombo, entoava cânticos religiosos, misturados a modinhas de vaquejada e de samba-de-roda do sertão baiano; Irreverente, reclamava de quem pregava notas de pequeno valor na bandeira: “Fio duma égua, prega uma misera de nota na bandera, e depois qué sê protigido du santo. Prus inferno com sua suvinice, miseravi!”!
Na esquina da rua Treze de Maio, existia a chácara de Josias Gomes. Além do grande pomar, a vivenda era dotada de uma imenso casarão, em estilo colonial, e teria sido um entreposto de distribuição de utensílios, roupas e ferramentas, enviados por Rondon aos índios bororos.
Lá pelas dez horas, a avenida foi tomada pelo desfile das charretes, conduzindo as “mariposas” – mulheres da ZBM que, em suas roupas multicoloridas, e adornadas de colares e outros adereços extravagantes, percorriam as lojas da avenida para as compras. A charrete, por ser a condução exclusiva das meretrizes, era apelidada pela hipocrisia do falso puritanismo reinante à época, de “balaio de p…” – uma alusão grosseira às desventuradas mulheres, que optaram pelo fascínio da mais antiga profissão do mundo.
Por volta das duas horas da tarde, sob calor escaldante, e com a cidade livre do alvoroço dos negócios, ouve-se a microfonia de um aparelho sonoro, querendo entrar no ar. “Alô.. Alô! Alô!….Atenção!” Era o locutor Francisco Bispo Rocha – “Chico Bispo”, com seu serviço de alto-falante, “A Voz Amplificada de Rondonópolis”. Após o suspense gerado pelo fundo musical de uma estrofe da marcha do “Quarto Centenário”, o locutor anunciou: “Amigos ouvintes, acaba de chegar da capital do Estado, o vereador Francisco Bispo Rocha – este locutor que vos fala, acompanhado do vereador Odilon de Brito. Visitem-nos!”
O alto-falante, à época, era um veículo de grande utilidade, pois, além de proporcionar o entretenimento da música, funcionava como um porta-voz das notícias e avisos oficiais; comunicações de festejos; notas de falecimentos…

(*) Valdemir Paes Landin é pioneiro de Rondonópolis que hoje reside em Chapada dos Guimarães – [email protected]

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