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, 26 maio 2024
 
 

Inglês em Machado de Assis

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Antes de mais nada, dear reader, peço a quem venha a ler estas malversadas linhas que desculpe a minha ousadia ao tentar, em tão pouco espaço e tempo, escrever sobre a vida e a obra daquele que ainda hoje é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, um ser humano como nenhum outro que já viveu e escreveu entre nossos antepassados. Para mim, confesso, é uma honra e um desafio pessoal mostrar a você, mais uma vez que também nosso best writer se rendeu à elegância e relativa importância (na época) da língua inglesa. Aos fatos!
Joaquim Maria Machado de Assis (21/6/1839-29/9/1908) viveu quase 70 anos e, acredite ou não, nunca frequentou uma universidade. Embora os pais o quisessem caixeiro, ele acabou trabalhando mesmo foi como aprendiz de vendedor de doces, balconista de livraria, tipógrafo, revisor e funcionário público. Impôs-se na vida pela persistência e na arte pelo talento.
Na verdade, Machadinho teve uma infância muito dura e viveu em meio a uma sociedade preconceituosa. Por obra do destino, o mais universal dos nossos escritores nasceu mulato, de origem humilde, gago e epilético. Ele era filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira. Para sua sorte, seus pais sabiam ler, embora vivessem à sombra da escravidão. Ainda assim, ele teve de largar a escola no primário por causa da pobreza da família, e às vezes estudou sozinho o que não aprendeu no colégio. Órfão de mãe, franzino e doente, foi criado pela madrasta. Aprendeu francês e latim com a ajuda de um padre amigo da família, que lhe deu aulas sem cobrar nada. Dizem que um de seus passatempos era ler, ler, ler. Só podia virar escritor!
Cidadão exemplar, felizmente teve seus méritos reconhecidos ainda em vida (fato raro no Brasil) e desfrutou de fama merecida entre os intelectuais da época. Seu ecletismo literário e a pecha de escritor revolucionário puderam ser vistos e lidos em folhetins de jornais e revistas. Durante sua incrível trajetória, cultivou e publicou vários gêneros literários: crônicas, contos, romances, poemas, peças de teatro e críticas ao longo de quatro décadas de muitos acontecimentos literários, políticos e econômicos. Com isso, ele fez da vida literária seu passaporte para a posteridade, renovou a literatura brasileira e, por tabela, tornou-se conhecido internacionalmente.
Segundo especialistas, sua obra trata das contradições, defeitos, cinismos, hipocrisias, incertezas, vicissitudes e esperanças da natureza humana e do mundo, com olhar impiedoso e irônico, com frases simples e sem enfeites. Segundo reza a lenda, poucos resistiam à sua delicadeza e simplicidade de escritor e pessoa. Nessa perspectiva, como não gostar da obra machadiana?
Ah, Mr. de Assis era do tempo dos bonds e dos lords, de ir ao club e dizer all right; e também da época do sarampo, da tuberculose, da febre amarela e do cólera. Ele viveu na época em que éramos os Estados Unidos do Brasil, e tinha o hábito de ler folhas inglesas e americanas com assiduidade e grande interesse. E o mais impressionante: produziu sua obra numa época em que mais de 80% da população brasileira era analfabeta! E, já naquele tempo, um dos costumes mais populares era usar expressões estrangeiras (geralmente em francês) para parecer mais sábio ou mais elegante nos meios sociais. Machado não gostava muito disso…
A portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais foi seu amor à primeira vista. Depois de casados, e por 35 anos, era ela que sempre cuidava da saúde frágil de Machado. Mulher muito culta, que dominava o inglês, ela não teve filhos, e morreu quatro anos antes do grande mestre. No campo da linguagem, ainda hoje há controvérsias sobre a influência de Swift, Sterne ou da esposa na obra machadiana, bem como se ele era realmente competente na língua inglesa nas quatro habilidades (ouvir, falar, ler e escrever). Fato inconteste é a presença de palavras ou expressões bretãs e pensamentos anglo-saxônicos na obra machadiana. Confira!
Por exemplo, em Um homem honesto (de Crônicas Escolhidas), Machado escreveu: “Os ingleses mudarão a face da terra.” Na obra homônima, Iaiá Garcia pede a Jorge que lhe ensine inglês. No Capítulo Primeiro de Brás Cubas, ele menciona o undiscovered country, que foram palavras ditas por Hamlet ao referir-se à morte. No Conto da Escola e também em seu primeiro romance (Ressurreição) aparece a palavra gentleman. Novamente nas Memórias Póstumas de Bras Cubas aparecem luncheon (almoço, no Capítulo LXXIII) e oblivion (esquecimento, no Capítulo CXXXV). Miss Dollar aparece nos seus Contos Fluminenses; Mrs. Oswald está em A Mão e a Luva; e Tristão e Filadélfia figuram em Memorial de Aires. Já em Antropofagia, ele conta o caso do enforcamento de um professor de inglês ocorrido na Guiné! Não poderia ter sido um professor de francês ou latim?
Machado de Assis, que nunca foi ao exterior, foi quem traduziu a primeira versão brasileira do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, e Oliver Twist, de Charles Dickens. Ainda assim, fica a dúvida se ele era capaz de conversar e escrever com fluência no idioma bretão. Em contrapartida, Gregory Rabassa traduziu Brás Cubas para o inglês e o crítico John Gledson versou Dom Casmurro para o idioma bretão, para desespero de seus detratores, como Silvio Romero. Sua importância era tamanha, que Machado foi eleito e permaneceu presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde a sua abertura, em 1897, até a própria morte, em 1908.
Aproximar os estudantes brasileiros de suas obras e ajudá-los a entender as sutilezas e ironias de suas tramas, suas linhas e entrelinhas repletas de humor e ironia, marca registrada da engenhosidade e delicadeza do escritor, aliada à singularidade da sua produção, devem permanecer uma prioridade no currículo nacional, se é que queremos efetivamente despertar o interesse dos nossos jovens pela “boa leitura”. Ressalte-se que parte desse estilo irônico se desenvolveu com base na obra de escritores ingleses, sobretudo Laurence Sterne, romancista inglês do século XVIII. De qualquer forma, admirado por sua vastíssima cultura, Machado tinha amor em particular por borboletas e consta que em sua biblioteca particular havia um considerável acervo de obras originais com textos (em inglês) de Macaulay, Shakespeare, Dickens, Longfellow e Poe, além de Jonathan Swift e Laurence Sterne, of course.
Quase no fim de seus dias, Machado estava com a vista fraca, infecção intestinal e uma úlcera na língua. Conhecia o mundo através dos livros e das leituras que fazia. E lia muito – escrevia mais ainda. Dizem que a última frase do grande analista da alma humana, vítima de um câncer de boca, foi: “A vida é boa” – ou “life is good”, talvez não por acaso o slogan da LG, empresa sul-coreana fabricante de eletroeletrônicos. Quem disse que ele não continua atual?
Objeto de merecidas homenagens, conferências, simpósios, exposições, reverências e reedições de suas obras, o primeiro Presidente da ABL é o clássico brasileiro por excelência. Enfim, um verdadeiro imortal, comparável ao francês Flaubert ou ao russo Tolstoi. O crítico literário Harold Bloom (uma sumidade na área) colocou Machado entre os 100 maiores gênios da literatura universal – comparando-o a Dante, Cervantes e Shakespeare. E mais: segundo o poeta Olavo Bilac, Machado “tinha a dignidade de uma velha águia ferida de morte”, que teve seus escritos vertidos para o inglês, alemão, dinamarquês, espanhol, francês, holandês, italiano, servo-croata, árabe, polonês, romeno, sueco, tcheco e estoniano. E ele soube muito bem dar o seu recado, pois cada livro seu é um presente aos leitores, de qualquer nacionalidade. Agora, se a imortalidade é para poucos, o Bruxo do Cosme Velho certamente está nessa lista – pelo menos na minha. Now and forever…

(*) Jerry Mill é Mestre em Estudos de Linguagem, Presidente da Associação Livre de Cultura Anglo-Americana (ALCAA) e Membro do Rotary Club Rondonópolis

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2 COMENTÁRIOS

  1. Congratulations Mr. Jerry,
    mais um artigo muito bem elaborado. Sem dúvida Machado de Assis foi um célebre brasileiro que alcançou a imortalidade, assim como Santos Dumont e tantos outros.
    A relevância dos trabalhos prestados à sociedade é fator determinante para que uma pessoa possa atravessar gerações, e assim, vencer a “morte”.
    Outro ponto em seu artigo que chamou-me a atenção é com relação a marca LG, naturalmente que não pelo significado literal, mais como se originou a idéia.
    Sem mais, fica aqui meus cumprimentos.

  2. Cidadão exemplar, felizmente teve seus méritos reconhecidos ainda em vida (fato raro no Brasil). Nessa pequena frase dei boas RISADAS. Isso é um meio de critica a sociedade? Ou um modo de abrir os olhos para aqueles que ainda tendam mudar algo no mundo e nós o apoiarmos? Mais esta de parabéns pelo artigo.

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