Eu e meu companheiro adentramos algumas vezes no canteiro de obras. Andamos com desenvoltura pela terra e notamos que os construtores e seus operários nos olhavam com respeito. Acho que tinham medo de uma representação junto ao órgão que cuida do meio ambiente. Entretanto, dava para ver que eles nos odiavam por estarmos ali reclamando, impondo nossos direitos, mesmo que tínhamos a absoluta certeza de que nada podíamos fazer para parar ou mudar alguma coisa dessa história. Eu dizia, sem pronunciar nenhuma palavra, que algo estava errado, mas eles não entendiam e nem fingiam para demonstrar isso.
As corujas debaixo da terra. E as araras azuis e amarelas, expulsas do Pantanal com a chegada dos pastos e depois das chamas, agora araras urbanas, sobrevoavam o local, procurando os buritis, palmeiras e as árvores de outrora. Apesar da fome, chilreavam, voavam, no entanto não encontravam um local para o pouso. Seus sons pareciam um canto de choro, de velório, de funeral. E era. Nalgumas vezes, pensei que elas iriam pousar na patrola ou na pá mecânica de esteira, de tanto darem voltas e voarem baixo, achando que era uma árvore que amarelou pelas pragas da ganância.
A terra em cima da moradia das corujas já ultrapassava um metro de altura.
As máquinas continuavam trazendo terra e as despejando, com suas tombeiras. Manobradas para retornar de ré ao local desejado, elas também emitiam um som intermitente chato e inoportuno, além de ribombar a caçamba, algumas vezes em manobras do caminhão, com a finalidade de derrubar até o último grão de terra que havia no seu lombo de metal. Não calculei, mas acho que eles operavam a maioria das máquinas, mais em marcha à ré, do que o contrário.
Tudo isso, de domingo a domingo. Um dia, apareceu alguém reclamando do trabalho no domingo, e o próprio encarregado-geral concordou em não trabalhar naqueles dias, porque ele já estava fatigado também. Bom, pelo menos um dia na semana não seria de tantos transtornos.
Só um dia. Nos outros, até parece que o banco financiador fez novas medidas e pagamentos, porque entupiu o canteiro de novas, maiores e mais robustas máquinas. Era o prenúncio da continuação do caos, com mais intensidade. E foi.
Chegaram outros profissionais, com roupas diferentes, mas sociáveis, com pequenos instrumentos, e ouvi um deles falar em teodolito. Viajei na espera de que iriam fazer medidas e prospecções para salvar nossas amigas enterradas vivas. Talvez, ainda estivessem com vida. Não fizeram. Mediram daqui e dali. Fincaram estacas brancas à marretadas, e foram embora. Olha que eu achei, que a tais estacas seriam cruzes em homenagem às corujas. Pura imaginação.
A noite passava depressa na maioria das vezes, noutras parecia não passar. Não se ouvia mais o barulho dos grilos, as luzes dos vaga-lumes, os movimentos dos gafanhotos, besouros, sapos e outros agentes noturnos. Até os cachorros diminuíram seus latidos, pois não tinham mais as graças da vida que só as corujas sabiam lhes dar. Praticamente emudeceram, em luto surdo pelo soterramento das amigas, posto que eram partes de suas vidas e razões de viver, quase parentes de algum grau próximo.
Começaram as tais das fundações. Buracos enormes e profundos. Claro que não estavam procurando as corujas. E, para ser sincera, eles nem lembravam mais delas. A ocupação da empresa era tanta que nem sobrava mais espaços para perambular pelas construções. Às vezes, eu ia lá no fim da tarde, quando todos já tinham desligados os equipamentos e haviam ido para suas moradias não enterradas, diferentes das corujas. Eu andava para lá e para cá, lembrando dos velhos tempos. Mas fomos empurrados para outras plagas, à procura de pastos rurais ou até mesmo campos de futebol suburbanos.
Voei com o meu companheiro para o nosso novo endereço provisório, rogando ao Pai, para não inventarem a construção de novos espigões arquitetônicos, para destoar o ambiente e nos expulsar dali, também.
(*) Hermélio Silva é escritor e membro fundador da Academia Rondonopolitana de Letras, cadeira número 6