Cadê as corujas que moravam aqui? Eu convivia com elas há muito tempo. Era um casal bem simpático. Moravam num buraco bem próximo da estradinha de terra, que depois virou um corredor de animais e máquinas de explosão. Não demorou muito e construíram umas casas bem próximas do nosso espaço, que ainda assim, era considerado rural, mas as ruas paralelas já estavam sendo asfaltadas.
Ouvia-se os grunhidos e latidos dos cachorros da vizinhança para aquelas criaturinhas de olhos esbugalhados e que moviam a cabeça quase 360°, ou como se fosse um parafuso enroscando. Elas, as corujas, gostavam de pousar no fio elétrico, acho eu, que era só para divertir os cães, que ladravam sem parar, incomodando-nos e também aos seus patrões e vizinhos. E elas não estavam nem aí. Ficavam cagando e andando, profusamente, muito mais o primeiro gerúndio.
Acompanhei o nascimento de seus filhotes em várias gestações e os vi tomarem seus rumos, por diversos verões. Ali, ficava esse casal tão bacana, produzindo seu chirriar característico, demarcando espaços e, com voos rasantes e gritos de horror, assustando os transeuntes desprecavidos e até aqueles que sabiam da sua presença, e mesmo assim, não gostavam do barulho produzido, uma vez que achavam ser de mau agouro e ou de assombração.
Aqui também podia-se nominar pássaros dos mais diversos, como joões-de-barro, sabiás, canários da terra, bem-te-vis, rolinhas, araras, periquitos, e até alguns roedores.
Em dado momento, chegaram uns homens com grandes equipamentos, a maioria era amarela, barulhenta e enorme. Reviraram a terra com um trator com arado, derrubaram as árvores que davam sombra e pouso, e o pior de tudo, transformaram tudo num terreno urbano para especulação imobiliária.
Deixamos o rural no passado e quem pôde, procurou outros cantos para sobreviver, mas juro por todas as almas, que nunca mais tive notícias do casal de corujas. Deus queira que não, mas não vi sair nenhumas delas do buraco-casa em que moravam, e presenciei a tapagem daquela entrada com o arado mecânico e, na sequência, uma motoniveladora aplanou tudo. Não demorou nem dois dias, e chegaram umas caçambas cheias de terra e as despejaram em cima da área. Daí, veio um rolo compressor, amassando e compactando tudo. Fizeram essa operação umas quatro vezes. Meu coração doía, mas não via, de jeito nenhum uma maneira das amigas corujas saírem daquele sepultamento vivo, ainda com vida.
Quase dois meses de trabalho. O barulho era ensurdecedor, algumas máquinas soltavam fumaça com monóxido de carbono à vontade, e o pior, eles fingiam jogar água na terra, com um mísero carro-pipa, e aceleravam os equipamentos, produzindo poeira sem medida. Uma vizinha nos disse que entrava poeira em todos os cantos da sua casa. Ela lavava suas roupas de dia e só as estendia à noite, quando os equipamentos paravam para o pernoite. Como o calor na nossa cidade é incomum, ela retirava suas vestimentas dos varais pela manhã, já secas, antes de o dono do mundo imobiliário tomar conta do bairro, com os seus potentes veículos pesados, e não precisaria lavar novamente as roupas empoeiradas. Ela dizia exageradamente e com desdém que, se cuspisse no fim da tarde, sairia um tijolo de oito furos da sua boca.
Ainda, recebi notícias que ao acionarem o rolo compressor, os muros das casas passagem pelos estágios de fissuras, trincas e rachaduras, e as casas tremiam, parecendo querer mudar de lugar, quadros caiam das paredes, e as populares e frágeis janelas Sasazaki de poucas espessuras faziam uns barulhos esquisitos, sendo que abriam ou fechavam sozinhas, como se tivessem vontades próprias.
(*) Hermélio Silva é escritor e membro fundador da Academia Rondonopolitana de Letras, cadeira número 6