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O trote universitário: suas origens e sua função deseducativa

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As aulas iniciam-se mais uma vez no meio universitário. É época de trote de calouros. O trote é uma forma de inserir os calouros na nova fase, processo chamado pelos antropólogos de “ritual de passagem”.  Época mais que oportuna para refletir sobre esse costume e agir para que se torne motivo apenas de alegrias, que deixe marcas apenas de boas amizades, que deixe aprendizagens sociais efetivas, em busca de uma sociedade desenvolvida.
De acordo o professor Antônio Zuin (1) da UFSCar, “o trote universitário pode ser identificado como um rito de passagem cujas violências física e psíquica são justificadas como uma tradição que deve ser perpetuada durante o processo de integração entre os calouros e os veteranos nas universidades”. Entretanto, como conjunto de atividades ‘iniciáticas’, o termo trote sempre esteve associado à humilhação e exposição do calouro às situações vexatórias e muitas vezes violentas. A definição formal do termo já evidencia o sentido pejorativo do ritual. Segundo o dicionário Houaiss, o trote é uma “tentativa de ridicularizar calouros, por parte dos veteranos”, enquanto que, para o Michaelis, trata-se de uma “troça ou vaia que estudantes veteranos impõem aos calouros”.
O trote originou-se há mais de 600 anos. O primeiro registro de atividades que remetem à ideia e à ideologia do trote é de 1342, na Universidade de Paris, na França. Naquela época, algumas ações eram tomadas como medidas profiláticas, como por exemplo, com o costume de, antes de entrar na sala de aula, os calouros terem suas roupas queimadas e os cabelos raspados para impedir a disseminação de doenças. Pouco tempo depois, trotes violentos já eram registrados. Sabe-se que os calouros eram agredidos, obrigados a comer fezes e beber urina de animais e tratados em um processo de domesticação, como animais, nos conta o professor Zuin.
Os sinais da opressão psicológica sobre os calouros começam no termo que os designa: a palavra ‘bixo’, grafada erroneamente com a letra x, que busca perpetuar a simbologia da tradição da época que eles eram tratados como animais. Por outro lado, a dimensão masoquista também está fortemente presente no trote.  Embora sofram com a humilhação – e, em alguns casos, com as agressões – alguns alunos se sentem “premiados” por fazer parte daquele grupo. Satisfeitos, estes passam a planejar o próximo trote, quando assumirão a posição de veteranos, aqueles que são responsáveis por causar o sofrimento nos mais novos – com um forte elemento sádico. “Alguns calouros querem ser trotados de maneira violenta. Senão, para eles, não significaria ser identificado como alguém que entrou na universidade”, acrescenta o professor Zuin.
O problema é que a sociedade como um todo parece desconsiderar os aspectos que evidenciam os sofrimentos causados aos calouros no trote universitário. Infelizmente, muitas vezes o caráter sadomasoquista do trote encontra-se integrado até mesmo no seio da família do novo estudante. Isso acontece porque ele não pode voltar para casa sem portar sinais que o identifiquem como alguém que entrou na universidade.  Para os pais, o trote acaba sendo visto como uma marca de status social, que diferencia os “capacitados” dos demais integrantes da sociedade, sendo ainda muito comum ouvir de pais de alunos que “fizeram pouco com o filho”, que ele próprio “faria muito mais”.
Embora muito recentemente tenham sido criadas iniciativas para coibir o trote universitário ou transformá-lo em uma atividade de integração educativa, a maioria das instituições ainda pouco agem para reverter ou mesmo transformar esse quadro. Os agentes educacionais (2) acostumaram-se, pois muitos deles também foram oriundos desse processo. Portanto, é razoável que os seus valores morais sejam simpáticos à manutenção desta tradição pautada na humilhação.
Como o trote ainda não é encarado como uma questão social, as vítimas de trotes violentos contam com poucas políticas que possam na prática, reduzir estas ocorrências. No estado de São Paulo, por exemplo, o trote violento já é proibido nas universidades paulistas desde 1999, pela Lei Estadual 10.454. A lei foi criada após a morte do calouro de medicina Edison Tsung Chi Hsueh, encontrado morto numa piscina da Universidade de São Paulo (USP). Por meio dessa lei, é vedada a realização de trote aos calouros de escolas superiores e de universidades estaduais, quando promovido sob coação, agressão física, moral ou qualquer outra forma de constrangimento que possa acarretar risco à saúde ou à integridade física dos alunos.
Entretanto, várias iniciativas têm demonstrado que é possível pensar em outras formas de iniciar a vida acadêmica de uma forma educativa, estimulando a solidariedade e cultivando a cidadania. Uma das mais conhecidas é o chamado de trote solidário, que promove atividades como a arrecadação de alimentos e roupas para serem doados a diferentes instituições (asilos, orfanatos, aldeias indígenas, etc.). Também ocorre com frequência a doação de sangue e realização de atividades diversas para a comunidade universitária e de entorno. O trote pode ser substituído também por palestras educativas, campeonatos esportivos, gincanas, etc. O importante mesmo é que os primeiros dias na universidade, bem como todos os outros, sejam marcados por uma socialização construtiva dentro de um processo educativo e saudável, cuja base seja a amizade e o respeito às diferenças. Afinal de contas, esse é um dos papéis fundamentais do Ensino Superior.
Recepcionar os que chegam é acolhimento, não é trote.

(1) Antônio Zuin: Pós-doutor em Filosofia da Educação e professor-associado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).

(2) Entendemos os agentes educacionais como todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente no processo educativo, tais como professores, alunos, funcionários e a família.

(*) Eglen Silvia Pipi Rodrigues,  professora doutora – UFMT/CUR/ICHS

(*) Waine Teixeira Junior –  mestre – UFMT/CUR/ICEN

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